Esse post é uma continuação direta do anterior, quando tentei
estabelecer relação entre o problema da mobilidade urbana e o papel
central do automóvel no transporte urbano e concluí que, para se
construir novas soluções, é necessário abandonar esse velho modelo.
Agora, pretendo examinar as alternativas.
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Metrô de Barcelona: sistemas de transporte sofisticados para cidades modernas. |
A engenharia de trâfego tem papel importante para gerar uma
infraestrutura viária adequada e bem planejada, mas depois que a cidade
já está formada e povoada, o essencial é racionalizar o espaço consumido
pelo trânsito, para não tirá-lo das pessoas - personagens que deveriam
sempre ter a preferência dentro de uma cidade. Vejo duas maneiras de
racionalizar espaço: favorecer veículos menores e mais leves; ou
favorecer veículos com maior capacidade de passageiros. O automóvel
particular, geralmente grande demais e com passageiros de menos, não se
enquadra em nenhum dos casos.
O transporte urbano será sempre multimodal, e nem precisa ser
diferente. Não é necessário abolir um meio de transporte em favor de
outro, apenas distribuir o espaço e a prioridade conforme o retorno
social de cada um. Carros continuarão existindo e sendo usados - não se
preocupe com isso. Mas serão usados cada vez menos, por menos pessoas e
em menos situações. Ou seja, se você realmente acha que nunca terá como
abandonar seu carro, pelo menos não terá que dividir o trânsito com
tantos outros carros. Bom, né?
O melhor exemplo de veículo menor e mais leve é a popular bicicleta.
A diferença de dimensão entre uma ciclovia (mesmo uma das boas) e uma
avenida (mesmo uma das ruins) dispensa comentários. A interação social
que ela promove, as vantagens para a saúde física e mental, a facilidade
para aquisição e a redução de poluição são outros aspectos positivos
facilmente observáveis. Não tenho dúvidas de que uma cidade moderna que
queira oferecer qualidade de vida precisa ter uma boa rede cicloviária.
Contudo, bicicletas não servem para todos, nem para qualquer situação.
Além do que, se todos usassem, a demanda por espaço também acabaria
crescendo. Ou seja, não é essa a solução final.
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Transportes coletivos de qualidade redefinem o cenário urbano - para melhor. |
Para multiplicar o espaço urbano disponível, o jeito é fazer com que
muitas pessoas acessem um mesmo transporte, ou seja, transporte de
massa. Um transporte que sirva à grande maioria das pessoas na maior
parte do tempo é o que viabiliza que outros meios sejam utilizados, de
forma complementar ou alternativa, sem que grandes espaços sejam
consumidos com novas vias. Pelo seu retorno social e papel estratégico, o
transporte de massa deveria ser priorizado sempre, e muito acima de
todos os outros, assim como também deveria ser altamente valorizado
pelas pessoas.
Não importa muito se esse transporte será sobre rodas ou trilhos,
subterrâneo ou de superfície - geralmente será um misto de tudo. O que
importa é que ele seja visto como bom e funcional pelos potenciais
usuários. No Brasil, a visão geral é de que transporte coletivo é ruim,
desconfortável, demorado e caro demais para a qualidade que oferece. Não
precisa ser assim. Tecnicamente, é possível oferecer um bom nível de
conforto sem grande custo, e nossos sistemas de transporte poderiam ser
organizados de forma muito mais funcional, consumindo menos tempo de
deslocamento em média e até reduzindo o custo.
Uma rede de linhas bem distribuídas no mapa da cidade e
interconectadas será sempre mais eficiente que um monte de linhas soltas
e sobrepostas. Não é inteligente, por exemplo, cada bairro ter sua
linha até o centro em uma cidade com mais de cem bairros. Quem já
utilizou uma rede de metrô sabe que não é essencial ir da origem até o
destino com uma única linha. Trocar de linha no meio da viagem é
perfeitamente aceitável se essa troca for rápida e tranquila. Imaginando
que há ao menos uma linha na origem e outra no destino e imaginando que
todas as linhas se conectam, uma combinação de duas linhas é suficiente
para fazer qualquer trajeto dentro da rede. Ao invés de mais de cem
linhas diferentes, haveria poucas dezenas, apenas o suficiente para
cobrir o mapa da cidade. Redistribuída a frota de veículos em menos
linhas, seriam mais veículos para cada uma, reduzindo portanto o tempo de
espera - o que compensa com sobra o tempo perdido na troca de
transporte.
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Uma hipotética rede de metrô em Porto Alegre (fonte aqui). Utopia? E se substituirmos algumas linhas por trams ou BRT's, mantendo o traçado e o princípio de integração e interconectividade? |
Seguindo a filosofia das grandes redes de metrô - que pode ser
extendida para transportes de superfície, por que não? -, cada linha não
se preocupa em ligar dois pontos em especial, mas sim em cortar a
cidade em algum sentido, de modo que seja abrangente e que corte as
demais linhas em algum ponto mais ou menos central, permitindo as
conexões. Não é essencial, mas é importante que esses trajetos sejam
servidos por vias exclusivas, o que aproxima o transporte de superfície
da funcionalidade de um metrô, principalmente em pontos onde outros
meios de transporte disputam o espaço - a preferência deve ser sempre
daquele que leva mais pessoas, ou seja, o coletivo.
Esse rede deve ter um número tal de linhas e estações que permita
percorrer toda a cidade - tanto bairros centrais como periferias -, sem
um número muito grande de estações por linha - o que tornaria a linha
mais lenta - mas garantindo que haja sempre uma estação próxima de cada
ponto da cidade - à distância de uma caminhada curta. Havendo sempre uma
estação próxima, sendo o tempo de espera curto e o tempo de
deslocamento também - mesmo quando há troca no meio do trajeto - e sendo
o transporte confortável e barato, pode-se imaginar que a grande
maioria optará pelo transporte coletivo, liberando grande espaço no
trânsito da cidade. É tecnicamente viável, há exemplos pelo mundo afora -
infelizmente, nenhum no Brasil.
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Uma cidade baseada em tranporte de massa tende a aproveitar seu espaço urbano de forma mais harmônica. |
Um ótimo uso para esse espaço que será liberado são as ciclovias.
Vias peatonais (para pedestres) também são importantes em áreas mais
centrais, de lazer ou de grande circulação de pessoas e serviços. Se
ciclistas e pedestres forem devidamente conectados a estações da rede de
transporte coletivo, aí teremos a situação ideal. Estamos falando de
uma cidade mais humana, acolhedora, agradável, mas também estamos
falando de menos poluição, mais acessibilidade, mais circulação (que
gera mais segurança nas ruas) e até mesmo uma maior atividade econômica,
graças a um maior acesso a comércio, serviços e entretenimento. Sem
falar no maior contato humano diário, fundamental para a manutenção do
tecido social que governa e desenvolve uma cidade.
A implementação dessa rede de transporte não é tão cara ou demorada
quanto se diz. Trilhos e linhas subterrâneas são importantes, mas não
são esseciais para essa filosofia: transporte integrador, conectado,
bem distribuído e de circulação frequente. O que falta não é dinheiro
nem tempo. Nem idéias, que podem ser copiadas e adaptadas. Falta a noção
de prioridade e de estratégia de parte da própria sociedade, ainda
presa à idéia de que o importante é ter avenidas duplicadas para usar
seu carro. Mas velhos problemas exigem novas soluções.