terça-feira, 17 de julho de 2012

O Triunfo dos Vagabundos II - O Ócio Feliz e Produtivo

No texto anterior, procurei esculhambar e achincalhar o conceito de trabalho como valor moral da nossa sociedade. Além de pouco simpático de minha parte, pode causar uma certa sensação de vazio. As gerações atuais, mais do que as anteriores, foram preparadas desde cedo para uma vida de trabalho abnegado e de definição existencial com base em uma ocupação ou carreira. A perspectiva de não ter que trabalhar - ou de trabalhar pouco - deixa a maioria das pessoas meio perdida e sem perspectivas. Alguém já disse que devíamos mesmo ser preparados para o ócio - e daí surgiriam naturalmente as vocações, idéias e projetos.

A contribuição da cigarra também conta, pois leva alegria à voluntarioso formiga.
 
Um erro grave, mas comum, que se comete quando o valor do trabalho é relativizado - sempre referindo-se ao conceito mais "tradicional" de trabalho - é acreditar que todos, se não trabalhassem, se tornariam uns inúteis, ou começariam a causar problemas. Afinal, mente vazia é playground do diabo, certo? Isso pode ser um tanto verdade hoje por causa da cultura atual, mas não é próprio da natureza humana. Talvez o próprio desajuste que muitos demonstrem quando em ócio seja devido à sensação inevitável de párias, de menos-que-cidadãos, fruto da cultura vigente. E a maior prova de que esse tipo de juízo é pura convenção é a diferença entre as classes de desocupados. Um rico que não trabalha é admirado e invejado como alguém que sabe viver a vida, mesmo que haja pouco mérito em sua fortuna - exemplos há de sobra. Já um "pobre" que não trabalha, pois vive bem com o pouco que tem (e, por esse aspecto, pode também ser considerado rico), é visto como um parasita social.

A verdade é que as mais significativas contribuições da sociedade costumam ser fruto do ócio. Claro que muitas invenções científicas e avanços tecnológicos devem-se à busca de seus autores por sucesso ou fortuna, mas as mais significativas dentre essas só poderiam ocorrer com uma boa dose de ócio. É aí que aflora a criatividade humana, jamais no stress e nas obrigações do trabalho cotidiano. E a criação que surge da vocação natural é sempre mais inspirada que aquela que surge da necessidade. Basta comparar a música de um verdadeiro artista e a música do artista comercial, feita sob medida para vender.

Outra verdade é que todo ser humano tem alguma vocação natural ou interesse genuíno. Não é necessário que seja algo tão essencial para o resto do mundo. O mundo tem bilhões de pessoas, a contribuição individual de cada um não precisa ser grande, o importante é que seja boa - ou seja, feita com boa vontade, talento e desapego. E somadas tantas diferentes contribuições, há de se encontrar de tudo. Desde que o ócio não seja visto como um raro momento de fuga de uma rotina enfadonha - como é hoje para a grande maioria -, o natural é que as pessoas queiram utilizá-lo para aquelas atividades que elas gostariam mas que normalmente não encontram tempo de fazer.

Sempre vi como verdadeiros heróis aquelas pessoas que, mesmo sujeitas a uma rotina de trabalho diária, encontram disposição em seu tempo livre para dedicar-se voluntariamente a atividades mais altruístas, em prol de um mundo melhor ou de uma sociedade mais justa, cada uma a sua maneira e conforme suas forças. Mas quantas outras pessoas sentem vontade de fazer algo assim, e certamente têm alguma habilidade a oferecer, e não encontram energia no pouco tempo livre que lhes resta? Quantas pessoas se dedicariam a idosos, crianças, pessoas com necessidades especiais, ou ainda ao meio ambiente, espaços públicos, atividades culturais, sempre voluntariamente, sem nenhum tipo de recompensa direta, e se sentiriam realizadas com isso? Aliás, quantas pessoas se sentem realizadas hoje com seus trabalhos?

É sempre uma possibilidade que alguns realmente queiram levar toda uma vida de puro ócio, talvez por falta de vocação, talvez por nunca ter despertado seus interesses. A esses, resta a questão do bom convívio social. Se, de alguma forma, representarem efetivamente um fardo para suas comunidades, serão cobrados por isso e se sentirão pressionados a ter uma atitude mais colaborativa. Mas, se estiverem em harmonia com a coletividade, que mal há? E se há bom convívio social, significa que ao menos nas pequenas ações e atitudes do dia a dia há alguma contribuição. O valor da contribuição de cada indivíduo para a coletividade só pode ser medido pela própria coletividade, e isso acontece naturalmente e segundo as características de cada sociedade.

Existe ainda aquela contribuição social intangível, impossível de ser medida, mas que deveria ser altamente valorizada em uma sociedade moderna, que é a contribuição para o nível geral de felicidade e bem estar. Isso pode ser feito através da arte, entretenimento, diversão, atividades culturais, esportivas, enfim, tudo aquilo que possa ser apreciado individualmente e compartilhado coletivamente.
Pense em tudo que você pode fazer hoje sem sair da cama.

Ou seja, se é verdade que estamos alcançando as condições técnicas para gerar abundância - e acredito que estamos -, deveríamos também já estar buscando essa sociedade mais feliz, solidária, produtiva e criativa. Longe de ser utopia ou devaneio, é uma conclusão lógica quando consideramos a realidade atual despidos de preconceitos, ou de valores éticos que já sobreviveram a seu próprio tempo e não fazem mais sentido prático algum.


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