segunda-feira, 14 de maio de 2012

Sociedade da Ineficiência

A questão da ineficiência - endêmica e proposital - é tema recorrente do meu cancioneiro, como nos artigos sobre a democracia representativa e sobre as cidades do século 21. É que sou repetitivo, chato mesmo. Mas acho realmente curioso como uma sociedade tão sofisticada desenvolveu um aspecto tão torpe. Convenhamos, é intrigante - a não ser que eu esteja inventando isso, mas acho que não.
Obsolescência programada: comprar, jogar fora, comprar mais.

Já é notório e bem estudado o fenômeno da obsolescência programada ou percebida, estado da arte do marketing de ineficiência. A programada é um genial recurso de design: produtos de qualquer gênero já são fabricados para não durarem. Quebram e não podem ser consertados, ou são superados por versões mais modernas e não podem ser reaproveitados. Como o nome diz, programada, é auto-explicativo. Poderíamos fabricar lâmpadas e baterias que duram décadas, computadores e eletrônicos que fazem upgrade com pequenos ajustes, peças de reposição baratas e reaproveitáveis para os mais diversos equipamentos, mas não o fazemos: precisamos vender sempre mais computadores, equipamentos, peças etc, e jogar tudo fora.

Já a obsolescência percebida é um genial recurso de propaganda: os consumidores são periodicamente convencidos de que estão desatualizados em relação à moda ou à última sensação do mundo da tecnologia ou da indústria automotiva. Assim, uma roupa, calçado, gadget ou até mesmo um automóvel são abandonados muito antes do fim de sua vida útil para dar lugar a outro mais novo e mais in.

Bem, produzir sempre as mesmas coisas para atender as mesmas necessidades, sempre renovadas, já seria ineficiente o bastante, mas o pior é o impacto indireto: consumo excessivo de matéria-prima por um lado e produção excessiva de lixo por outro. A reciclagem em larga escala trataria esse impacto, mas restaria ainda o desperdício de energia, espaço físico para armazenagem e custos de transporte.

A prática da obsolescência tem seus equivalentes também na ineficiência de serviços. Processos e fluxos de informação são desenhados para não resolver problemas - pelo menos não antes de muito custo. A tradicional burocracia das grandes repartições públicas e privadas não tem qualquer necessidade técnica de continuar existindo, mas sobrevive não apenas pela tradição, mas principalmente por um interesse em cultivar aqueles problemas que legitimam a existência da repartição. Percebe-se facilmente que não há grandes intenções de solucionar o que quer que seja da melhor forma possível, mas sim de estender os processos ao máximo possível, envolvendo toda uma série de estruturas e pessoas ao longo do caminho.
"Vamos estar resolvendo seu problema... not!"

A ineficiência em serviços não apenas gera empregos. Cria oportunidades. Envolve o consumidor em uma teia de necessidades que ele não deveria ter, e o obriga a consumir novos serviços que ele não deveria precisar. É como entrar em uma loja de celulares para reclamar do péssimo serviço e sair de lá com um aparelho novo e um novo e maior contrato, que logo em seguida começa a dar novos e maiores problemas. Uma fidelização maligna.

A sociedade, de um modo geral, tem dificuldade em perceber o quanto isso é intencional, pois nossos hábitos protegem a ineficiência. A maioria das classes sociais e categorias profissionais aceitam, praticam e cultivam hábitos essencialmente inúteis à evolução humana: convenções, que excluem ou desencorajam novas formas de pensamento ou prática, além de fechar espaço ao questionamento crítico; formalismos, que podam a criatividade humana e tiram a flexibilidade dos processos de trabalho ou de comunicação; e aparências, que são um grande sistema de adesão à falsa crença de que tudo está bem, ou de que ao menos cada um faz o seu melhor para que esteja, e que os métodos empregados são os melhores possíveis. Dessa forma, profissões inteiras se ocupam em usar palavreados difíceis, vestir trajes distintos, defender normas vazias que apenas servem a sua autopreservação e praticar procedimentos quase ritualísticos que supervalorizam seu trabalho e nada agregam a quaisquer serviços. E só. E pode-se ter certeza que todo esse faz-de-conta custa caro à sociedade duas vezes: pela manutenção das estruturas corporativistas e pela energia gasta em procedimentos e atividades que não agregam qualquer valor.

As categorias profissionais até mostram-se arraigadas a tradições, valores, coisas bonitas, mas a verdade é que todas, enquanto classes, buscam restrições de mercado para si, para sua maior pujança no caso das bem sucedidas ou para sua sobrevivência no caso das mais ultrapassadas. E, claro, restrição de mercado também é um fator de ineficiência. Alivia a consciência pensar que a restrição protege a sociedade, qualifica os serviços, promove o melhor conhecimento. A verdade é que diminui a concorrência e a diversidade, restringe o conhecimento e atrasa seu desenvolvimento e distancia a sociedade da apropriação dos serviços e conhecimentos que lhe são necessários. Interessante para quem vende esses serviços, mas para a sociedade não é.

Toda intermediação de informação ou serviço gera alguma forma de ineficiência por definição. Na melhor hipótese, consome tempo, e na pior inviabiliza o serviço. Em vez de apropriar-se do conhecimento e evoluir, a sociedade permanece refém de um corporativismo ou de convenções classistas que sempre restringem a oferta do serviço - pois se um serviço for oferecido de forma geral e irrestrita, não fará sentido qualquer forma de corporativismo. O melhor - na verdade, pior - exemplo dos efeitos negativos da intermediação instituída é o próprio sistema político representativo, já comentado no artigo anterior sobre política contemporânea.

A mesma máquina de mídia que promove a obsolescência percebida também promove o papel das instituições, classes e convenções, e divulga séries de ações sociais das mais inspiradoras, muitas vezes até filantrópicas, mas essas entidades ou tratam de problemas que elas mesmas criam com sua existência ou tratam de questões outras que não lhes competem, não justificam sua existência e poderiam ser muito melhor tratadas por outras pessoas, se houvesse espaço. A mídia tradicional (aquela que se ocupa com promoção institucional ou comercial, e não com informação) associa-se a corporações comerciais, governamentais ou classistas para perpetuar esse modelo de funcionamento dos meios de produção e serviços que, em síntese, determina como objetivo social a manutenção dessas corporações, e não o atendimento e resolução das necessidades da sociedade.

Por fim, se estabelece uma relação definitiva entre ineficiência e o modelo corporativista, pois se uma instituição de qualquer sorte existe para tratar de um problema, ela será eficiente se eliminar esse problema ou reduzi-lo à insignificância, o que a torna automaticamente dispensável. Ou seja, uma instituição eficiente elimina a si mesma, o que é o objetivo oposto de quase todas as corporações já instituídas na sociedade. A ineficiência é totalmente presente em nossas vidas hoje, e é desejada e necessária pelos sistemas atuais. Mas algum horizonte de mudança desse quadro talvez possa ser apreciado no artigo sobre a Terceira Revolução Industrial. Ou, pelo menos, espero que sim. Mas, senão, ainda escreverei mais sobre isso - pois este artigo já está grande, o que não é nada eficiente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário