quarta-feira, 30 de maio de 2012

Engenharia de Tráfego Moderna: um case de caos urbano

Moro em Porto Alegre, uma cidadezinha no remoto sul do Brasil. Apesar de pequenina e provinciana, Porto Alegre tem a infelicidade de suportar sobre sua superfície 1,5 milhão de criaturinhas humanas, sendo que toda a área metropolitana apresenta aproximadamente o dobro desse singelo número. Aproximadamente mesmo, quase se esbarrando um no outro. É bastante gente se mexendo e fazendo barulho para todo lado. Uma verdadeira maravilha do Brasil moderno.



Em minha cidade, não reclamamos muito de falta de metrô, tramway, Brt... Afinal, somos brasileiros, e isso é tudo coisa de europeu fresco. Para nós, transporte público é coisa de pobre, é o bumba, chacoalhando o povo por duas horas entre o centro e o bairro. Agora, experimenta botar semáforo na rua para ver se não viramos feras dentro de nossos carros. E nem adianta, pois nossa cidadezinha não paga imposto para botar semáforo - aqui chamamos de sinaleira, que é mais pitoresco. Tem sinaleira embaixo de viaduto, em volta de rotatória, a cada dez metros em vias expressas, enfim, nossa criatividade permite colocarmos sinaleira em quase qualquer lugar. E nosso gênio ruim faz com que amaldiçoemos as mães de todos aqueles que as colocaram.

Pois bem. Atualmente, uma mega ação de intervenção urbana da prefeitura espalha semáforos em torno das principais rotatórias da cidade. Antes de mais nada, registre-se minha opinião técnica e bem balizada sobre o assunto: rotatórias com semáforos em volta parecem um forte sinal de que algo vai meio mal na engenharia de tráfego. Tipo, tecnicamente falando, uma verdadeira bicheira de engenharia de tráfego. Mas, sabe o pior? Era necessário.

Nessa pacata cidade, vale a lei do mais forte. Aqui, entenda-se que a massa de um carro multiplicada por sua velocidade lhe confere energia cinética. Quem detém a maior energia cinética tem a preferência em uma rotatória. E pode ser bem difícil decidir isso no calor do momento, cada um correndo para chegar mais rápido ao próximo congestionamento. Nossas rotatórias são um desafio à boa convivência de nossos calmos e bem equilibrados motoristas. E pior ainda para os pedestres e ciclistas - sim, pois, pasmem os habitantes de outras realidades, essas calamidades do trânsito costumam ficar em áreas de grande circulação de pedestres. Atravessar uma rotatória é arriscar a vida, já que pedestres e ciclistas têm uma energia cinética que nem merece respeito.

Foi necessário, e bem feito. Bem feito para os muitos motoristas que abusam de sua energia cinética nesses locais, e não demonstram quase nenhum respeito pela pele dos mais indefesos. Aproveitem a parada em frente aos semáforos para refletir sobre a vida.

Essa singela parábola do motorista portoalegrense, que desrespeita o pedestre e depois esmurra o volante quando tem que parar em um semáforo, representa bem a problemática de muitas das questões urbanas modernas: ação e reação, yin e yang, o que vai volta, e o que você faz é o que você recebe. Jogue lixo nos bueiros e sofra com os alagamentos; desrespeite as regras de convivência no trânsito e sofra com o trânsito precário; apóie o fechamento de bares e atrações de lazer em nome de seu sossego, depois sofra com a falta de opções de lazer na cidade.

Uma cidade é mesmo recheada de criaturinhas humanas dos mais diversos naipes e gênios - quase todos ruins. Aliás, não o fosse, não mereceria o nome de cidade. No máximo, vilarejo. Na verdade, essa diversidade é o que gera riqueza cultural e desenvolvimento humano a uma cidade - diferentes idéias, visões de mundo, experiências de vida, tudo convivendo junto em um único espaço e tal... Mas se houver a tal convivência. Na sociedade de consumo, aprendemos a valorizar nosso espaço, nossa casa, nosso carro, nosso ar, nosso silêncio... Mas em uma cidade grande os espaços não são tão individualizados assim. Nem tem como ser. Milhões de criaturinhas inquietas e barulhentas? Mude-se para o campo ou para a praia - uma das bem pequenas.

E pela própria lei de ação e reação, quanto mais se tenta fechar o espaço de uma tribo urbana, geralmente daquelas mais chatas e barulhentas, mais ela reage incomodando e fazendo barulho. Quanto mais os carros tomam espaço da cidade, mais os demais grupos tendem a invadir esse espaço. E quanto maior o confronto entre diferentes grupos de interesses, maior a regulação e restrição para todos.

Uma cidade grande deveria ser capaz de acomodar a todos os grupos se preservado o interesse comum. Uma boa rede de transporte público atendendo à grande maioria libera espaço suficiente para todos os demais, sejam motoristas, pedestres ou ciclistas. Uma boa quantidade de espaços de convívio e lazer permite opções a todas as tribos, sem disputa por espaço ou invasão das áreas de sossego. E assim vai, essa é a idéia. Mas tudo isso demanda que se pense no bem comum antes do particular. Yin e yang, o que vai volta. Aquilo que você faz é o que você recebe.

A engenharia de tráfego moderna é um ótimo exemplo do quanto é inviável tratar nossa falta de capacidade de convivência na marra. Enquanto cada um se preocupa com seu próprio espaço, tape-se a cidade com semáforos, viadutos, quebra-molas, barreiras, e assim fica ruim para todo mundo e não fica bom para ninguém. Não deixa de ser democrático. Claro que seria melhor enfrentar nosso gênio ruim e desenvolver o respeito mútuo e a prática da coexistência. Mas somos mesmo criaturinhas muito barulhentas.

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